
(Ivana Almeida)
Essa foi parte da crônica do meu casamento. Ainda hoje estamos juntos, e parece improvável que haja um fim nisso tudo; vai-e-vem e a gente sempre acaba na mesma sina: nós dois.
Munique Alemanha, 9 de Maio de 1940
Mãe querida,
Sei que os meses foram de angustia pela minha falta nas correspondências, mas aqui está um pouco difícil de arranjar uma folha de papel em branco sem as salpicadas marcas de sangue fresco. O hospital onde sou voluntária, o São Martino, é aterrador: todos os leitos ocupados por mutilados e moribundos – uma visão medonha a qual nunca me acostumarei. O pior é o cheiro das feridas que apodrecem sem cuidados e o som mortífero de gemidos e pedidos de socorro. Isso realmente me tira o sono.
Parece que essa guerra desgraçada vai matar todo mundo aqui! Há cada caso, mamãe, que meu coração sangra de tristeza. Na semana passada, uma indigente, achada nos escombros de um prédio abandonado, foi hospitalizada com urgência e não fora difícil perceber que havia sido brutalmente abusada. Na sala cirúrgica retiramos resquícios de madeira de suas partes e tratamos dos inúmeros machucados por todo seu corpo. Quando estávamos a sós, ela me revelou sua historia: sua mãe morrera muito cedo ficando apenas com seu pai e seu irmão de cinco anos de idade, quando aquele fora convocado e morto
É assim trabalhar em uma guerra, mamãe, é assim sofrer por não conseguir mudar esse rumo, é assim encarar a morte diariamente e é assim descobrir o ser humano. Como conseguir dormir enquanto várias dessas garotas estão perdendo sua infância, sua alegria, sua vontade de viver e de ter esperança? Como pensar em dinheiro e poder enquanto homens e mulheres se desgraçam em um choro sem fim por seus mortos? Quando se trata de um corpo “sem importância”, simplesmente é jogado no meio do lixo hospitalar, sem ao menos um enterro decente – que indignação, meu Deus!
Ah, Dona Célia! com tantas assombrações me perseguindo aqui, eu só queria poder passar esse dia das mães ao seu lado! Estou tão carente de colo de mãe e dos seus abraços que me protegem desse mundo cruel e que me tira qualquer medo... mas sei que preciso estar nesse lugar, preciso ser mãe de milhares de pessoas! Obrigada por seu amor, e por ser você a minha mãe!
Ps.: junto à carta, estou mandando uma lembrança, coisa simples, mas sincera. Não demore a me responder.
Amo mais que tudo em mim.
Com uma saudade sem medida, Lia Martins.